Juçara Marçal cria um mundo sem fronteiras sonoras em “Delta Estácio Blues”

Vinicius Felix
5 min readMar 31, 2022

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Quais são as fronteiras da música? Quanto elas se parecem com as fronteiras das ruas, dos mapas? A pergunta é válida tanto para ouvintes quanto para fazedores dessa música. Como pensar o fazer e o escutar música sem reproduzir essas mesmas barreiras? É possível? É necessário?

Vamos ao rap brasileiro, por exemplo. Gênero criado boa parte nas margens da cidade, caminhou em direção ao centro das cidades ou até suas periferias ricas enclausuradas em condomínios. Levou muito tempo para ser reconhecido com o devido valor e em muitos lugares ainda não é.

Mano Brown, talvez seu maior autor, ainda não é reconhecido por muitos como talvez o maior escritor de seu tempo — e nessa nem estamos falando só de rap, é papo de literatura. O Brown intelectual que aparece já no primeiro verso que ele cantou surpreende muita gente só agora que ele é um podcaster de primeira categoria criando conversas que estão de olho futuro. Na média, uma ideia sobre quem é Mano Brown em meios tradicionais por muitas vezes esbarra na caricatura racista criada por humoristas brasileiros, onde ele é sempre um burro mal-humorado.

Se as fronteira sociais, as fronteiras de uma cidade segregada estão reproduzidas na leitura sobre um autor, que inclusive denuncia essas rachaduras em sua obra, imagina no resto.

Até quem ama Brown periga errar nas ideias. Pense nas críticas quando ele ousou não fazer um disco de rap em seu primeiro trabalho solo. Por que ele não pode fazer outro som? Adorei quando tive a chance de entrevistar ele com muitos colegas e ele devolveu esse questionamento com algo na linha do “se vocês querem um disco de rap do jeitão que está na moda hoje, eu faço agora, sei todos os caminhos, todos os truques”. A aspa exata está em algum lugar aqui.

“Não somos donos da verdade
Porém não mentimos
Sentimos a necessidade de uma melhoria
A nossa filosofia é sempre transmitir
A realidade em si”

Racionais MC’s, “Pânico na Zona Sul”, 1988

Se em tantos lugares o Mano Brown real não aparece, eu acredito que a realidade em si está contada por muita gente atenta. E tem tempo, viu? Em 2004, Juçara Marçal estava junto com o grupo vocal feminino Vésper nos cuidados de um álbum dedicado a autores paulistas. A seleção de autores tinha Adoniran, tinha Rita Lee e tantos outros, mas já ia se esquecendo de Mano Brown e Edi Rock. Foi quando Juçara não se conformou e sacou um clássico recente: a potente “Negro Drama”, de 2002. A música não tinha dois anos, mas ela já fez a leitura precisa, estava diante de um clássico. E afinal, se estamos falando da história da música paulista, como não ter um rap dos Racionais? Juçara já se fazia as perguntas que abrem este texto.

E parece que sempre fez questão de voltar a tais perguntas a cada trabalho, em sua carreira de cantora cada vez mais autora, como gosta de dizer. E talvez dê para dizer que são essas perguntas que ditam parte da missão de “Delta Estácio Blues”, seu segundo álbum solo.

De imediato estamos diante de um trabalho que habilidosamente em sua construção tira o referencial sonoro imediato do próprio fã. Não encontramos de cara resquícios da Juçara de outros trabalhos. Tudo bem que ela é muitas, pelo inúmeros projetos, mas não há sequer uma ponte com o trabalho solo anterior, “Encarnado”, de 2014. Sem qualquer zona de conforto, o ouvinte é provocado a se questionar. “Que lugar é esse?”. E as perguntas que Juçara se faz surgem diferentes na cabeça de quem escuta. Mas é um rap essa aqui? Aquela voz é da Juçara nesse som? Isso aqui é samba?

Muita coisa acontece na voz de Juçara por aqui. É a cantora/autora em ação, informando muito no timbre, na colocação, na cadência. Repare na voz. Cada uma em cada música é uma sutil criação de personagens. O caso mais explícito pelo álbum é quando ela canta autores com assinaturas muito particulares. Ela desenha com a voz Rodrigo Ogi (autor de “Crash”), Tulipa Ruiz (autora de “Ladra”) e Tantão (autor de “Oi, Cat”). Excluindo Tantão, a gente não conhece como Ogi e Tulipa cantariam suas próprias músicas, mas tente não pensar neles escutando suas músicas na voz dela. Eu considero impossível.

E só nessa área, Juçara já dinamita uma expectativa constante de parte dos ouvintes, especialmente quem busca em um novo álbum um velho artista. Não há prisão pela técnica, pela expectativa, por uma determinada Juçara Marçal. A porta está livre. E do jeito que Juçara faz fica difícil até lembrar que havia uma porta ali. Que porta, camarada? Que papo, hein.

Essa brisa se repete quando pensamos em gêneros músicas. GG Albuquerque, notou que “Crash”, que tem jeitão de rap, também se revela como samba sutilmente. Isso acontece com outras músicas, é difícil dizer como é a cara de cada uma pensando em algum gênero, especialmente porque a parte instrumental praticamente se recusa a dar dicas de localização. Talvez essa dicas aparecessem em uma ousada versão remixada que seria basicamente o álbum tocado a partir de voz e violão, como sugeriu Romulo Fróes.

A partir da malha instrumental intricada e misteriosa criada a partir de uma engenharia eletrônica tocada por Juçara ao lado do fiel amigo, Kiko Dinucci, produtor do álbum é difícil supor com certeza qualquer coisa, mesmo o que é tocado, por exemplo. Agora com as apresentações ao vivo, você pode visualizar de onde vem cada coisa em alguma medida (“ah, então isso é uma guitarra?”), na experiência exclusiva do álbum a conversa é bem outra.

Voltando a falar de rap, muito da linguagem de “Delta Estácio Blues” é inspirada por álbum de rap: no caso, de “Atrocity Exhibition”, de Danny Brown, com suas bases completamente distantes de qualquer convenção que tentem estabelecer para o gênero.

“Ficamos impactados com aquilo”, conta Juçara. E nessa vontade de pensar outro som veio a ideia de ter bases que não trouxessem cadências harmônicas para que ela e Kiko pudessem brincar com outras possibilidades. “Uma aventura que a gente não sabia onde ia dar.”

“A existência humana é, porque se fez perguntando, a raiz da transformação do mundo. Há uma radicalidade na existência, que é a radicalidade do ato de perguntar. […] Radicalmente, a existência humana implica assombro, pergunta e risco. E, por tudo isso, implica ação, transformação”
Paulo Freire e Antonio Faundez, “Por uma pedagogia da pergunta”, citação que abre Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática, de bell hooks

Cada ouvinte que dê conta de criar suas próprias perguntas sobre “Delta Estácio Blues”. A gente se arriscou aqui em tentar pensar na nossa perguntas, pouco atento as suas respostas. Pela potência do álbum cada audição trará mais outras. Uma certeza disso tudo: Não há fronteiras no mundo de Juçara Marçal. E este nos parece um mundo melhor.

  • Esse texto foi publicado originalmente na Popload em 5 de outubro de 2021. Essa versão é uma reescrita que abre mão da concisão para ser um ensaio aberto, sujeito a mudanças a partir das leituras e perguntas dos amigos e colegas
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