Muito açúcar, pouco afeto

Vinicius Felix
5 min readJan 27, 2022

--

Ou a proximidade do papo “Chico Buarque não vai mais cantar ‘Com Açúcar, com Afeto’ por causa das feministas” das fake news

Um dos principais méritos da série “O Canto Livre de Nara Leão” é quando ela para e dá todo o tempo do mundo para uma canção. Renato Terra, diretor, e Jordana Berg, montadora do filme, dão por várias vezes esse espaço raro a canção em um filme sobre música. A canção sabe falar sozinha, justo que se dê essa chance a ela.

Desses muitos momentos, um dos mais bonitos é quando tudo fica suspenso para que Nara cante uma música que pediu a Chico Buarque: “Com açúcar, com afeto”. Voz, violão, canção. Ali, dá para entender tudo (ou quase tudo) que a Nara queria dizer com essa música encomendada ao Chico. Se não bastou, momentos antes ela dá uma dica, ao rir enquanto anuncia a canção, avisando que gosta dessas músicas em que a “mulher fica em casa enquanto o marido fica farreando”.

Ela cita “Fez Bobagem”, “Camisa Amarela” e conta que pediu uma nesses moldes pro Chico Buarque. A sutileza do seu comentário, a segunda leitura que se pode dar a música a partir do seu canto melancólico, o fato de ser uma música do anos 60 que dialoga abertamente em harmonia, melodia e letra com os anos 50. Recado dado, né?

Mas voltemos mais. Momentos antes, Chico fala sobre a música, sobre o pedido de Nara e desconsidera essa leitura de fina ironia da canção. Se é o autor que está dizendo isso, quem somos nós? Ele comenta que ao não saber que reproduzia uma dose violenta de machismo cometeu um deslize justificado pela época, e dá razão a crítica feminista que viu na música um problema. Se falaram que tá errado, é porque deve estar errado, ele calcula. E e aí vem a tal polêmica afirmação, quando diz que não cantará mais ela, ao que imagina que Nara faria o mesmo.

Agora é fácil falar, mas talvez Renato Terra deveria ter investigado mais ao levantar o assunto com Chico. Ficamos sem saber de onde veio essa crítica feminista ou qual peso dessa autocensura, já que é fato que Chico abandonou a música de seu repertório muito antes da invenção da internet, por exemplo.

Talvez Terra não calculou o estrago que viria quando a imprensa resolveu polemizar a fala, até porque a ideia de Chico no documentário tem uma leveza no seu bom humor e a imprecisão que é típica de uma conversa, que dispensa maiores investigações.

Mas vamos, finalmente, aos vários posts na internet que decidiram ver na fala de Chico outra coisa. Repare:

É difícil precisar quem levantou a bola primeiro, já que horário de postagem não é lá das coisas mais precisas na internet, mas note como cada texto vai meramente reproduzindo o outro. A coisa cresce ao ponto do papo dos blogs chegar na “grande mídia”, que cobra pelo conteúdo, sem qualquer crítica, com dois dias de atraso, muito provavelmente de olho na ausência desses mesmos veículos na “conversa do dia”.

(nota rápida: chegar a ser engraçado que no caso do G1 vem a ressalva que invalida dar a notícia: “a música, na verdade, já estava fora do repertório há algum tempo”)

Do jeito que a imprensa decidiu tratar do assunto parece que Chico decidiu aqui, no ano de 2022, no calor do momento de uma suposta crítica feminista que é forte na internet, abandonar a música. Escapa dessa percepção tudo que falamos até aqui: a imprecisão da fala, a ausência de certeza do lugar onde se deu a decisão e tudo mais. Nara e sua interpretação, então, sem chance.

Essa é aquela hora que a imprensa deixa a bola para a torcida fazer o gol. Pior: o gol que quiser, no caso. Uns elogiaram Chico pela sábia e educada decisão. Outros resolveram ver nessa autocensura um gol contras das feministas, um gol contra a liberdade de expressão, uma capitulação do artista ao “politicamente correto” e por aí vai. Nessa leitura, Chico e essa vaga ideia de um grupo de feministas se tornam alvos de uma fúria sem qualquer sentido.

Porque todas essa opiniões partem de uma falsa notícia. Faltou aos autores desses posts colocarem o pé na bola, segurar jogo e avaliar: “quando Chico decidiu isso?”, “peraí, a última gravação dessa música por ele foi ainda nos anos 70”, “ei, talvez essa fala dele nem tenha esse peso todo”, poderiam ser algumas ideias que concluem: isso não é uma notícia. Mas entre dar a informação precisa, ou só ignorar esse assunto, ficou a opção pelo show. E aí desse quase fato, nasce uma falsa polêmica.

No nosso pouco tempo disponível, é responsabilidade da imprensa informar bem. Porque a partir dessa barulheira, quem confiou na informação dos posts se atrapalha. Exemplo a coluna de Juca Kfouri, que vem com um apelo “para que Chico mude de ideia e não cometa contra si mesmo, contra a nossa música, a nossa cultura, tamanho pecado”. Pode ficar tranquilo, Juca. Chico não canta a música há 30 anos. Não tem crise.

Talvez as melhores linhas sobre o assunto sejam as de Nina Lemos, que trouxe para o papo o cuidado do Chico com a crítica feminista, abordando a trajetória de aliança dele com o movimento. Ainda que talvez a postagem não existisse sem a falsa polêmica, ela puxa a conversa para um detalhe verdadeiro e sensível da fala de Chico. Golaço. Se a conversa tivesse começado aqui, putz, seria tudo melhor.

Por questão de pressa, (que também tenho um editor me cobrando, enquanto faço esse texto por fora) eu me adianto aqui também e talvez a ideia que vem agora soe exagerada.

Quando coisas desse tipo de coisa acontecem eu entendo talvez um pouco da dinâmica que levanta absurdos como as mentiras do kit gay ou da terra plana. É preciso muito pouco da nossa vontade para que acreditemos em algo que está incorreto em uma notícia. Essa historinha do Chico talvez não tenha consequências tão perversas quanto essas outras duas que citei, mas conta um bocado sobre a situação da nossa imprensa desesperada por conseguir atenção, a dinâmica das redes que levanta muito barulho por nada e do nosso papel nisso tudo em simplesmente não conseguir dar fim em uma conversa sem sentido.

Em tempo, esse texto não pretende ter como alvo os autores das notas. Como lembrou meu amigo Amauri Gonzo, qualquer um que se aventurou no jornalismo consegue visualizar a cena da mensagem do editor chegando no zap: “temos isso?”. E tente você se recusar a escrever. Eu era desses e agora escrevo no Medium, hahaha. Pobre do editor também pressionado em excesso por resultados. Nessa longa cadeia de responsabilidades, a culpa é do dono sempre. Como também me lembrou o Gonzo, na hora que a bomba explode “é o chão de fábrica que assina o manifesto”. Tenhamos isso em mente.

— — -

Vinicius Felix também é podcaster no Telefonemas, um podcast de conversas. Curtiu esse texto? Considere dar uma força para o Telefonemas ficar no ar: https://apoia.se/telefonemas

--

--